desista, poeta

1.

quando eu digo
sol
corpo
pedra
pretendo dizer o sol o corpo
a pedra

mas fracasso

2.

a rosa
dos ventos gira
nessas tardes do século
vinte e um
e nas ruas da cidade a
vida
se desdobra
silenciosamente

o povo não é um
número
o povo
é aquela mulher
na janela de um prédio
apaixonada
e ainda mais é aquele homem
que caminha a esconder
uma infância

3.

o esforço é encontrar
a palavra
real e sólida

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vagalumes

com paciência traçar
de volta os caminhos
até os lugares onde fomos

o silêncio pode
ser
um abrigo ou o
espanto da voz

descobrir de novo as extensões
do corpo
pisar com os dois pés
piscar com ambos
os olhos
esticar os braços
(esquerdo e direito)
até onde alcançarmos

mutirão

todo verso é fatal
porque o tempo é curto

importa claro mas já
não basta falar
de episódios individuais
o dia em que
o transporte atrasou aquela vez
em que o café na varanda
remeteu a algum filme francês cujo nome
já não se lembra mais

nós falamos de dentro
da poesia
queremos a palavra, mutirão,
que brota do corpo compartilhado
das coisas
quando ao viver elas
resistem à sua integração na fileira
de formas de concreto
e gritam

O melino

Malemba enfrentou pela primeira vez uma não-ciência em sua vida, pela primeira vez foi tartamuda, quando o seu filho primeiro, ainda um nenê, abriu a boca, por um breve foi imenso; então desatou a miar. Era esperado há semanas que o menino desse as primeiras palavras. De resto, fazia tudo igual era conhecido de criança fazer, na mesma ordem e no mesmo tempo, que eram a sua própria ordem e o seu próprio tempo; mas aquilo, não. Aquilo era incompreender, era pedir demais. Sequer gato havia nas redondezas, como? Todo dia ouvia: mamãe, mamãe, papai, papai. Mas o menino de começo foi: mi. a. mi. e então fez, fez aquilo, se felinou.

A mãe olhava, interrompida na sua cozinha. Era uma mulher assombrosa, Malemba: a pele escura como o sonho, o olho fino feito a boca não era, e seu passo, seu passo como rios não passam. Parecia o mundo estivesse nela e não ela no mundo. Parecia sua alma fosse o horizonte. Essa era Malemba, a mãe do meni, menino, menino, menino que, que, que o quê?, ela hesitava em assimilar; do menino que miava.

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suas próprias costelas

rua, centro da cidade, 20h.
(esse é um poema jornalístico.)
pessoas voltam para casa de
seus trabalhos e inundam os
pontos de ônibus
(o poema jornalístico tem a
pretensão de retrato imparcial
e fiel de pessoa, lugar ou objeto)
existe uma pequena
retenção na proximidade
da cidade nova e uma das
pessoas que esperam o ônibus
se chama juliana
(discorrer sobre a natureza
do poema jornalístico
o torna um poema
metalírico)
juliana é a única pessoa
naquele ponto do centro
da cidade às 20h que
não quer voltar para casa
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caleidolíngua

lembrar do nosso passado
na casa, os cachorros
e as canções

contamos histórias
escrevemos poemas
o que é
essa coisa
que pede/oferece voz?

nos virar ao avesso
traçar linhas constelações
no espaço por dentro do corpo

estabelecer a partir dos
fragmentos uma linguagem
caleidoscópica