palhaço no canto do palco

é, faz sentido que seja difícil acreditar no que viu um menino mesmo se dessa vez se trata de um Circo e mesmo se dessa vez se trata de um menino sem pais: e que por isso não precisa esconder que saiu sozinho, não precisa mentir nada: o jeito que ele conta parece mesmo muito sincero, acho que podemos acreditar nele, é justo que para aqueles que perderam tanto venha algo assim em compensação, um menino que perdeu os pais tem muito mais direito de encontrar na borda da cidade súbito assim ele e sua bicicleta, os dois súbitos um Circo. para quem nunca esteve sozinho ou nunca precisou explicar o mundo pra si mesmo ou nunca tropeçou e se ralou e sangrou e não teve quem acudisse ou quem já cresceu demais e não anda mais de bicicleta à noite entre ventos e silêncios: para essas pessoas não faz sentido não é fatalmente necessário encontrar de repente um Circo.

talvez por isso é que aquele menino sem nome e sem ordens deixou a bicicleta no canto da rua poeirenta entre passos e pessoas: muitos: feito toda a rua tivesse saído de dentro das casas porque alguma coisa chamava, debaixo daquelas nuvens que escondiam uma lua prateada, lua que derramava prata nos prédios, lua que cobria de prata o asfalto, ó lua, mas por fim ninguém viu para onde ele olhava arrebatado admirado espantado em êxtase e surpresa e basicamente um grande uau reverberando em seu corpo todo, seu todo corpo pequeno, seu todo corpo que não sabia e não pretendia saber.

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o dia em que mataram o velho espírito

Tudo aconteceu depois que pegaram o velho espírito. Certo que sim, me lembro muito bem: foi em dias políticos, eram tempos de intriga, aqueles, ninguém querendo mostrar suas verdades por conta de muitos medos, e num fica-não-fica de presidentes os homens cercaram a capital e lá mesmo, lá, deram-lhe um tiro bem no coração: pá!

Isso, como tudo, foi televisionado. A gente via os progressos sem saber o que dizer. Muitas armas e uniformes, a bandeira da nação oscilando alto no céu azul, foi quase uma cena bonita, mas a gente ainda assim não sabia o que dizer. Era um suspense, o bairro inteiro dentro das casas, então: pá! nem vimos, sentimos mesmo o pobre espírito caindo por terra, decerto agonizava com a mão no peito como um personagem do faroeste. No peito talvez azul? que nem o de um espectro? ou seria claro que nem a luz? Não sei, não o vimos, mas certo momento eu olhava muito assustado o rosto da minha irmã. Continue lendo “o dia em que mataram o velho espírito”

os monstros

a partir do clipe de Lazarus, de David Bowie

Os monstros sentem medo da gente e se escondem debaixo da cama. A gente deita, faz amor e sonha e é preciso muita coragem pra deitar, fazer amor e sonhar e eles têm inveja da nossa coragem. Dentro dos armários os monstros pensam que nós é que somos os monstros, e eles são as pessoas que deitam nas camas com monstros debaixo. Aí nós os assombramos de noite e eles cobrem suas pernas e tentáculos para que não os arrastemos até o lado de fora do quarto: porque o lado de fora do quarto pode ter dias e noites, e pessoas e jardins com plantas e outros armários ou novos corredores que ninguém sabe aonde levam. Então de certa forma é como se saíssemos de dentro do armário só para olhar de volta e ver os monstros escondidos lá de onde saímos e tornaremos a sair tantas vezes só para assustar os outros monstros, que estão do lado de fora. Mas os monstros do lado de dentro do armário não sabemos como tirar. E aí a gente deita na cama e sonha com liberdade e sonhar com liberdade é quase como ser livre, e aí a gente grita porque quem é livre precisa gritar uma vez ou outra, e debaixo da cama e dentro do armário os monstros esticam as garras pra encostar na gente, mas eles não ousam. É claro que também temos um pouco de medo dos monstros, mas pelo menos ousamos encostar neles e convidá-los para debaixo dos cobertores, porque é melhor ser íntimo dos monstros do que não ser. Eles não gostam, têm medo e por isso preferem virar de cabeça para baixo as camas e derrubar os armários, mas nós não caímos do teto quando tudo está de cabeça pra baixo, em vez disso ficamos voando ou pairando no ar, como se não existisse chão, como se não existisse teto e nem monstros e nem armários, e fôssemos um pássaro, sol ou qualquer coisa luminosa e infinita.

O melino

Malemba enfrentou pela primeira vez uma não-ciência em sua vida, pela primeira vez foi tartamuda, quando o seu filho primeiro, ainda um nenê, abriu a boca, por um breve foi imenso; então desatou a miar. Era esperado há semanas que o menino desse as primeiras palavras. De resto, fazia tudo igual era conhecido de criança fazer, na mesma ordem e no mesmo tempo, que eram a sua própria ordem e o seu próprio tempo; mas aquilo, não. Aquilo era incompreender, era pedir demais. Sequer gato havia nas redondezas, como? Todo dia ouvia: mamãe, mamãe, papai, papai. Mas o menino de começo foi: mi. a. mi. e então fez, fez aquilo, se felinou.

A mãe olhava, interrompida na sua cozinha. Era uma mulher assombrosa, Malemba: a pele escura como o sonho, o olho fino feito a boca não era, e seu passo, seu passo como rios não passam. Parecia o mundo estivesse nela e não ela no mundo. Parecia sua alma fosse o horizonte. Essa era Malemba, a mãe do meni, menino, menino, menino que, que, que o quê?, ela hesitava em assimilar; do menino que miava.

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