Rainha

A que decide
conversar
com os
humanos.
Mensageira,
tradutora. Folha
verde grossa
e flores brancas.
Mãe que
oferece
os cantos, mão
que sonda os
recantos:
microscópio.
Onde reina não
se vê muralha.
Semente de formas
e movimento,
voz firme e gentil.
É professora
das melodias belas,
é guardiã
de palavras
ancestres. Cresce
forte e faz
romper a vida
em presença. Nos
leva ao fundo
mais fundo
das águas.
Lá ensina
a respirar.

fazer um poema

como quem acorda devagar, espreguiçando
uma outra tarefa que não o poema.
fazê-lo deixando-o de lado
com frequência terrível, um abandono
qualquer nas mãos: ignorando
o desejo de que fique pronto,
considerando o poema equivalente
a refeições, encontros,
observação de pássaros.

ver o poema perder aos poucos
os dentes de leite, por acidente.
vê-lo crescer distraído, irrelevante com o passar
da casa, sem projetos, um bicho,
uma planta e contente quem
sabe. ver como muda o corpo do poema:
como crescem pelos sobre o poema.

fazer um poema deixando que ele
se faça, ou que a vida o faça, sem
apressar nem um nem outro: até que
um dia, sem aviso, ele mesmo descubra
o que veio fazer aqui: e nessa hora
atenção — só isso:
eu, você ou quem
ainda estiver por perto.

mês que chega

como quem não
quer nada, mas
carrega todos os
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀tremores – já inventados
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ou ainda por inventar –
proponho fazermos
um acordo, coisa
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀simples: que você passe
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀por mim, e eu por você
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀sem reservas
que nem eu, nem
você precisemos
fingir alegria se
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀o momento for pra dor
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ou vice-versa
e que ao final
de nosso mútuo
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀passeio reste ainda
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀material bastante
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀pra que brinquem
(por pelo menos
outra rodada) os
nossos sucessores

habitado

não existe um bicho apenas
dentro de mim. é em quantidade
suficiente para dar conta de festa & fome
que sou habitado – atravessado. entre chão
e o que chamamos de mistério: plumas, patas,
rastro. engana-se quem pensa o contrário.

não concordo que alguém me pense
somente uma árvore, um único arbusto.
é também de cipó os meus braços, enroscando-se
no que vive: com força, apego de jiboia ao mundo
que é terra. e também a lâmina mais irreverente
da grama rasteira sou eu: invisível e viva, verde
junto ao verde, todas elas juntas.
e o vento que me alisa.

quando falo, tampouco acredito serem
minhas as palavras que digo. engana-se
quem pensa que basta uma pessoa para
movimentar um corpo uma língua. se escutar com
atenção, verá como foi preciso, para a manifestação
mais simples, que cada voz esbarrasse na outra
& na outra & na outra & na outra & na outra &

um pouco tarde

Depois de a
muitas custas
aceitar que
você é onde
meu corpo
cisma estou
agora
à procura
de responder:
quando afinal
é que se
ama quem
se quer (
ou quando
se pode
enfim perder
-se em quem
se ama) e
quem foi
mesmo que
disse que não
pode ser
agora (e
nem sequer
amanhã
no mais
tardar pode
ser) quando
até
se fosse pra
ontem
seria ainda
um pouco
tarde
?

a vida possível

se você quiser eu também
posso ser bélico
eu também posso me enfiar nas trincheiras eu
também posso levantar barricadas afiar
as baionetas calibrar a mira das
armas de fogo arremessar explosivos
na direção dos rostos
inimigos pilotar tanques caminhonetes
aviões puxar gatilhos

se você quiser eu também sei
endereçar a morte
eu também sei de lugares que
poderiam ser chamados terra de
ninguém sei como narram as estatísticas
histórias de genocídio sei que
há sofrimento e indiferença neste
mundo para dar e vender e
que poderíamos estar
reinaugurando guilhotinas e
que desilusões espreitam e botas
tratores fuzis punhos se encarregam
continuamente de violar o brilho
das vidas em resistência

se você quiser eu também posso
ser muito duro muito realista
eu também posso ser outro
cronista do apocalipse também posso
ser um corpo cartesiano também posso
medir os dias com instrumentos de minha
prepotência salgar as noites com
vazios de minha indiferença eu também
posso ser aquele que não está rindo
enquanto todos à sua volta
gargalham ou aquele que enxerga a inutilidade
de todas as coisas aquele que sabe muito
mais do que a maioria dessas
pessoas ignorantes que habitam à
sua volta levando suas vidinhas
de pessoas comuns posso ser aquele que jamais
beberia uma xícara de café após
as oito horas da noite

mas então você será responsável
por dizer as palavras da minha boca

movimentar minha língua já acostumada
a hospedar a vida possível

contemplação

senhora das águas do céu e das matas
fonte de luz saúde
bem viver

quando apresento nas mãos
uma palavra
é porque escutei
em algum momento
o acaso que você
fabricou

e quando após o giro inteiro
da roda
encontro na outra ponta
ainda
o espanto desse lugar

é porque percebo que
estou aqui

nesse tempo nesse corpo
diante do que se abre

com minhas pernas com esse medo
esses olhos minha língua
e meu desejo
fogo do
músculo

estou aqui

e peço que nesta cidade de choque
atropelamento morte vontade amor (às
vezes) guerra
eu mantenha
firmeza
junto àqueles que
compartilham todo
o horror dessas noites

olhando para os lados e vendo
sua companhia
olhando para a frente e vendo
outro tempo

e sempre que esta luta fuligem
de fome & eterna se
                  suspender
                  por um breve instante
meu silêncio possa
antes de
desalento

ser contemplação
dos mistérios que
você criou

sereia

procuro
mistérios insondáveis em coisas
simples como suas mãos
             desenhando no espaço que respiramos
             uma visão da noite passada

aprendi esse ano que o casulo é pra sempre

segredo dos bichos que praticam
a metamorfose
como rito cotidiano:
não existe início não existe final
isso que chamamos tempo
isso que chamamos vida

– e aqui nós, os inteligentes –

coragem, bebida
de muitas ervas

nem sempre saber
o que tem dentro do
momento
de que se bebe
é também entrega
ou quem sabe amor

depois, chamar de vida o
que cresce
nas frestas de nossa desesperança

olhá-la com a atenção dos precipícios

quando toda origem é traçada
de volta ao mar
odoyá sereia
suas águas ensinando: calmaria e desordem
coisas que a gente inventa

escuto que o casulo é pra sempre

que não tem isso de fugir mais cedo
se o vento começa a balançar

transparência

você implorando palavras
enquanto olha o céu as nuvens de fogo
os prédios dos homens

vejo sua respiração
grande cansaço das coisas
desde quando andar era uma
descoberta
até agora em que todo caminho
mata fechada selva ou cidade adentro
exige de nós a fortaleza do corpo
exige parcerias amores muita reza
muita coragem

a gente aqui debaixo do azul
se perguntando

quando é que
será lá na frente
talvez o brilho
de que falavam os antigos

talvez pouco
pequenas recompensas do cotidiano
a certeza de estar aqui

apoiados na imensidão

você descendo os olhos o concreto do ponto
de ônibus ainda
morno
desses dias verão no trópico

retendo toda a mansa impureza
deixada pelos sapatos
daqueles que caminham

guardando tanto de nosso anseio
que escorre quando num lance
rápido de olhar te encontro
e por telepatia você escuta
enquanto repito um mantra
hoje o que posso
com meu corpo o que tenho

proteção de nossas próprias ilusões

e não longe as palmeiras
muito quietas
nos ensinam a ficar
em pé

inventar nosso alimento

transmutar fuligem
em transparência