os ossinhos

Senhor, os ossinhos do mundo são de mel e ouro.
Matilde Campilho

 para Vinicius Varela

 

os homens ainda constroem casas? diz
são paulo ermitão no deserto. depois de muitos
anos pergunta: os homens ainda falam
sobre as chuvas o clima e os vestidos
de renda colorida? e as mulheres ainda
têm pés? as mulheres os homens
as crianças morrem ainda?

(pode ser que o deserto
nós fazemos. talvez sobre a rocha
tudo seja mais claro uma invenção.)

os inventores ainda estão por aí todo dia
a inventar coisas? duvida afoito
o santo. e os padres perdoam ainda?

só temos a oferecer
matéria de dúvida
e mistério. senhor, os ossinhos do mundo
ninguém poderá roer.

ainda o mundo
tem ossinhos? ou terá já se dissolvido
em água e escuro? são paulo, padre do deserto
que tanto caminha, mesmo ele gostaria de saber:
senhor, quantas coisas
haverá ainda no mundo?

uma lua, uma jarra de barro,
uma cidade. três animais correndo
enquanto há vida. o som dos gestos e movimentos.
culpa e medo. também alegria. um presente.
um corpo preso em outro corpo.
o tempo não há mais:
abriu-se por inteiro.

Em formação de cunha

nós piscamos e o mundo agora
é um quarto de espelhos e fumaça suja.
é muito rápido. não há espaço para uma certeza.
as frases oficiais são espelhos, o céu vem caindo queimado
aos poucos em direção à terra. talvez enxergar
não seja possível como antes.

o pouco que sabemos é muito antigo – é preciso ouvir
com atenção: o passado, as florestas, os sábios – mas sabemos
que a destruição de tudo, enfim,
está muito fora do nosso alcance.
muitos homens têm cultivado em seu próprio corpo
um órgão, uma máquina de destruição. seu próprio corpo
se ingerindo aos poucos no vômito do ódio à vida. é verdade.
mas não temos significância suficiente
para destruir a vida. ela sempre há e se move.
nós é que ficamos para trás.

mas entre nós a clareza – de lutar pela vida com a coragem
de não negá-la em seu estado mais faminto. quando a vida
é um rastro de gosma ou seiva escorrendo e nada mais.
quando ela não é ainda exuberante. quando é magra
como ontem e hoje, e apenas uma coisa ferida, quando é pouca
e caminha de pés descalços sobre a cidade,
dizer sim. recebê-la. porque não há opção.

e durante o sim deixar vivo inquieto e violento
o outro órgão a outra máquina de fogo,
quente e intransigente, disposta ao extremo radical,
sem conciliação – esse órgão que não esquece o que eles
destruíram. a vida estupidamente irradiante que eles
apagam todos os dias. que se vingará ainda do fascismo
miserável com a sentença do apagamento. ela que não é mais possível
e por isso é de máxima importância. sim, essa vida com adjetivos.
aquela que intimamente sabemos. contra a morte de sua possibilidade:
todos os nossos dias e sempre, sem esquecer de nada, este corpo coletivo
em formação de cunha

Cardume

para Ecio, Daniele e suas filhas

 

uma revoada de balões. um café
em copo de plástico. a biografia
de um massagista. uma carona até o
pechincha. um desenrolo. um atraso.
metade de um século, o que é bastante
coisa. um chope IPA. um aplicativo para
contar os km nas corridas. uma festa
cheia de livros. todas as coisas das
melhores partes da cidade do rio de janeiro.
e você nunca dando nenhuma pista pra gente
de que já planejava se despedir.

talvez planejar seja uma palavra
um pouco forte. a gente sabe que a vida
é absurda, talvez absurda demais pra
alguém fazer planos. aqui e em todos
os momentos. uma correnteza, os caminhos
balançando pelo tremor de cada dia,
se abrindo e balançando.
a gente na corda bamba, estufado
de amor e medo. e assim se vai.
não tem muito o que fazer.

então talvez você tenha aceitado,
só isso. e permitido. te enxergo um instante antes,
de frente à porta, sem resistir mais
à compreensão do passo. uma resignação
humilde pelo espetáculo que são as coisas
se transformando, o nosso corpo
lançado e aberto. em frente.
acredito.
e procuro compreender.

no fim das contas, foram poucos
os que viram você ir embora.

a maioria de nós, muito lúcida,
te vê aqui ainda

uma cidade onde

eu venho de uma cidade
em que o corpo exposto
ao perigo cidade em
que as plantas rosas
furando o céu mas deus
sabe bem melhor de seus
mistérios de mel do que eu
que só desperto onde tudo é
maravilhoso nessa cidade
desordenada da qual
eu venho e pra onde eu
sempre volto até que
o sol torto das tardes
é uma cidade sempre até
que a vida solta pelas veias
porque ela escorre escorre
e não existe infraestrutura
suficiente as ruas inundam
é culpa da prefeitura que
não faz obras de contenção
pra evitar essa sujeira esse
afogamento das paredes
nas coisas humanas e você
nem imaginaria o musgo
a luz o lodo a prece a peste
que da enchente berra todo
santo dia enquanto todo
mundo tenta andar erguendo
a barra da calça pra não se
molhar muito mas se você quiser
pode deixar aqui sua roupa
seu pulmão se você quiser
é claro você pode escolher
dizer adeus a tudo que não
seja água ou verdade e a gente
mesmo que não afunde pode
se lavar e observar o que
se move enquanto te conto
sobre toda a morte que há
na escuta sobre todos os
gestos em uma espera e todas
as línguas em que esbarrei
até aprender a me calar

o iluminado

em hong kong na china fizeram
uma estátua de 34 metros
de buddha, o iluminado

(não sei há quanto tempo
essa obra foi realizada
porque a pedra dura)

e aberta a estátua levanta uma
das palmas de suas mãos
abençoando a gente

que ela observa atenta
intransigente e sagrada
do topo da montanha

buddha, o iluminado
na sua versão gigante de pedra
equivale a um prédio de uns

11 andares
reinando para a harmonia
de toda a ásia

34 metros de pedra
são a altura de aproximadamente
20 homens adultos

e de todas
ou quase todas
as suas dúvidas

fizeram uma estátua de buddha
para que ela nos lembrasse
de que somos também iluminados

e sabiamente ela se suja
com toda a poeira do mundo
todos os dias aos poucos

de modo a que os descendentes dos homens
que ergueram tian tan buddha
ao lado do monastério po lin

precisem periodicamente subir
as escadas do monastério
e aqueles 34 metros

para fazer manutenção na cabeça
para limpar os olhos de pedra
do grande e silencioso mestre

e com sorte entender que até
o iluminado precisa de ajuda
para enxergar melhor